ANÁLISE: Afinal, por que foi reconhecido vínculo de emprego entre motorista e Uber?

A questão jurídica mais discutida no ecossistema de tecnologia e inovação recentemente foi a respeito da decisão que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista da Uber e a multinacional.

Nesse artigo vamos destrinchar de forma mais clara e com detalhes as razões que levaram a justiça brasileira a definir pela relação de emprego, ao menos em 1ª instância.

Previamente, esclarecemos que nosso artigo usa a tese apresentada pelo juízo. Contudo, isso não significa necessariamente que o entendimento apresentado é o mesmo que nossa equipe tem do caso concreto e muito menos do que pensamos como ideal para o Brasil. Apenas temos convicção que a evolução tecnológica precisa ser acompanhada pela legislação, mas sem prejudicar a sociedade ou beneficiar uns (poucos) em detrimentos de (muitos) outros.

Resumindo o caso

Atualmente temos diversas ações na Justiça do Trabalho brasileira em que motoristas/ex-motoristas da Uber pedem pelo reconhecimento de uma suposta relação de emprego com a multinacional, alegando que jamais receberam como empregados, apesar da atividade exercida se enquadrar nos preceitos definidos na legislação trabalhista brasileira, no caso a famosa CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas.

No caso de decisão mais recente apresentada em Belo Horizonte/MG, o magistrado interpretou que existe sim o vínculo de emprego e condenou a Uber em todas as consequências de uma suposta fraude, determinando que ela fizesse todos os pagamentos e atos necessários de uma contratação tradicional de empregado (Leia aqui a sentença na íntegra).

Na visão do juiz, o que temos hoje é o fenômeno da “uberização” das relações de trabalho, traçando um paralelo desta com os conceitos anteriores de “fordismo” e “toyotismo” provenientes de uma era industrial.

Portanto, a relevância do fenômeno Uber envolveria muito mais do que a simples relação de emprego, mas também as consequências disso em outras esferas da sociedade e do trabalho e como isso pode vir a ser aplicado em setores ainda não imaginados.

A partir dessa definição, o juízo partiu para análise do vínculo, definindo de forma pontual se havia ou não as quatro características inerentes a esse tipo de caso: Pessoalidade, Onerosidade, Não-eventualidade e Subordinação (falamos sobre isso em um artigo nosso recente e que você pode ler mais aqui).

Nós analisamos e agora vamos esclarecer item por item. Vejamos:

1) Pessoalidade

“Resta claro, portanto, o caráter intuitu personae da relação jurídica travada pelas partes, principalmente porque não é permitido ao motorista ceder sua conta do aplicativo para que outra pessoa não cadastrada e previamente autorizada realize as viagens.”

Para que se considere a existente a pessoalidade é necessário que a atividade exercida seja obrigatoriamente feita por uma pessoa física específica.

No caso da Uber, é óbvia tal exigência, até porque é solicitado uma série de informações do motorista que se cadastra, ao solicitarmos uma corrida temos a informação do nome e foto do indivíduo vinculado ao veículo específico e, caso identifiquemos que não se trata do motorista, podemos relatar isso como passageiros insatisfeitos, por exemplo.

Nesse ponto, o juiz utilizou do conhecimento de quem já usou a plataforma e de testemunhas para demonstrar a evidente relação de pessoalidade entre o motorista e a Uber.

Em tempo, a Uber alegou não existir pessoalidade, porque ela não seleciona o motorista que irá atender a corrida solicitada de forma deliberada, apenas indica aqueles que estão mais próximos do cliente que requereu. Contudo, a argumentação não serviu, vez que a pessoalidade diz respeito a Uber/motorista e não motorista/cliente.

2) Onerosidade

“A afirmação da reclamada de que era o reclamante, enquanto contratante, que a remunerava pela utilização da plataforma digital não se sustenta à luz do Princípio da primazia da realidade sobre a forma, por afrontar cabalmente a realidade dos fatos.”

Onerosidade, de forma objetiva, é o ato de pagar alguém por um serviço prestado.

No caso fático, a justiça se utilizou de um dos princípios basilares da esfera trabalhista, a primazia da realidade, para justificar a existência da onerosidade. Isso porque a Uber alegou que o motorista é quem a remunerava, pagando para utilizar os serviços da plataforma e não o inverso.

Contudo, ao analisar a realidade dos fatos, percebe-se que a Uber define taxas dinâmicas que aumentam ou diminuem o preço das viagens a depender da oferta/demanda, define formas de pagamento diferenciadas em regiões do país, oferece descontos e promoções aos clientes que solicitam viagens em momentos específicos, tais como carnaval, natal e ano novo, além de pagar prêmios aos motoristas por performance.

A partir disso, fica difícil acreditar na tese de que o motorista é quem paga pela tecnologia. O que ocorre de fato é uma intermediação pela Uber, recebendo do cliente final em seu nome, conforme se observa quando pegamos nossa fatura de cartão de crédito, retirando sua comissão em percentual pré-definido e repassando o restante ao motorista.

Logo, não nos parece haver dúvida. Sim, a Uber remunera os motoristas pelo serviço prestado e isso é uma hipótese clara de onerosidade prevista na legislação.

3) Não-eventualidade

 “Assim, não há dúvidas de que, ainda que a ré atue também no desenvolvimento de tecnologias como meio de operacionalização de seu negócio, essa qualificação não afasta o fato de ser ela, sobretudo, uma empresa de transporte.”

O magistrado optou pela nomenclatura “não-eventualidade”, mas que diz respeito ao mesmo conceito da Habitualidade. Basicamente, a eventualidade que a Uber tenta alegar só existiria se a característica do serviço fosse transitória e condicionada a um motivo específico ou evento não previsto que justificasse a contratação pontual do serviço de motorista.

Isto posto, o fator determinante para o reconhecimento da não-eventualidade no caso foi a compreensão do juízo de que a Uber na verdade é uma empresa de transporte e não uma empresa de tecnologia ou de software, apesar de tal característica estar descrita nos atos constitutivos da multinacional.

Tal questão foi decisiva, porque ao interpretar pela existência de uma empresa de transporte, a necessidade do serviço de motorista não seria apenas para eventos esporádicos, mas para atividade frequente e vinculada ao corebusiness da empresa. Na essência, não existindo o serviço do motorista a Uber não sobreviveria.

Não obstante, as testemunhas ouvidas no processo deixaram clara uma questão de conduta que corroborou muito para a caracterização da não-eventualidade.

Nos depoimentos foi exposto que a Uber definia pela obrigação do motorista de trabalhar ao menos uma vez por mês ou seria afastado do uso da plataforma, tendo seu cadastro desativado. A partir disso, resta claro que a empresa exigia o trabalho habitual ou ao menos com uma frequência mínima.

Logo, se analisarmos toda a tese construída pela defesa da empresa, se a Uber fosse apenas uma empresa de tecnologia, não interessaria o fato do motorista trabalhar ou não, muito menos seria interessante ameaçá-lo com eventual desativação, vez que, quanto maior a base de motoristas cadastrados, maior a possibilidade de ser remunerada por eles.

Novamente, daí a relevância de se ater as condutas da sua empresa com muito mais cuidado do que aquilo que escrevem em uma folha de papel ou em um site. Na justiça trabalhista, a busca pela verdade real ultrapassa qualquer formalidade.

4) Subordinação

 “Na hipótese dos autos, sob qualquer dos ângulos que se examine o quadro fático da relação travada pelas partes e, sem qualquer dúvida, a subordinação, em sua matriz clássica, se faz presente. O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas.”

 Como o próprio juiz definiu na sentença, a subordinação é, indubitavelmente, o mais importante para a caracterização do vínculo de emprego.

Entende-se por subordinação, em uma análise genérica, como sendo o ato de ordenar ou exigir certas condutas de um terceiro. Ou seja, a subordinação está ligada a capacidade de determinar condutas e estipular limites à outrem.

Essa questão é com certeza a mais discutível na sentença que definiu pelo reconhecimento do vínculo motorista x Uber. Isso porque, ao analisarmos a situação real, imaginamos que a Uber realmente não exerce subordinação direta. Ela transfere o poder de mando para o cliente final que solicita a corrida e o restante das ações são definidas pelo próprio motorista. Ao menos deveria ser assim.

Contudo, quando se observa o que foi exposto pelas testemunhas, sendo algumas delas ex-gerentes da própria multinacional, nota-se que existe uma série de normas e condutas a serem seguidas pelos motoristas, sob pena de exclusão da plataforma.

Ainda, eram feitos treinamentos em que não era apenas demonstrada a forma de utilização do aplicativo, o que poderíamos definir por treinamento educacional, mas expostos padrões mínimos de conduta com o cliente, como se vestir e até era falado sobre a necessidade de se ter balas e água sempre disponíveis no veículo.

Outro ponto que reforça a subordinação eram as questões de se bloquear/excluir da plataforma motoristas que recusassem 5 ou 6 corridas ou que tivessem com notas abaixo de 4,7 nas avaliações fornecidas pelos clientes. Novamente, se a empresa não fosse uma empresa de transporte, não deveria se posicionar de forma tão autoritária sobre a opção do motorista de trabalhar ou não, nem sobre a qualidade do serviço prestado, vez que isso seria prejudicial apenas para o próprio motorista.

Por fim, para dificultar ainda mais a possibilidade de não se considerar uma subordinação direta, de acordo com os depoimentos de um ex-gerente geral da Uber, era determinado de forma transversa quanto o motorista iria receber, não sendo possível ao motorista optar por qualquer base de cálculo ou acordar a tarifa com o cliente final.

Conclusão

Expostos os 04 tópicos que serviram para a 1ª instância de Belo Horizonte reconhecer o vínculo, acreditamos que estão bem claro os reais motivos da decisão, lembrando que a decisão é passível de reforma pelo Tribunal da 3ª Região e também que já há outra decisão em 1ª instância definindo pelo não reconhecimento de vínculo proferida por outro magistrado, logo ainda muito água ira correr nesse rio.

De qualquer forma, reforçamos aqui a importância do empresário em conhecer a legislação trabalhista brasileira, os seus princípios basilares e quais as consequências de condutas internas que não condizem com o que a empresa tenta fazer parecer aos olhos da sociedade.

Aproveitamos também para alertar os empresários a respeito da importância de um acompanhamento jurídico no dia-a-dia empresarial. Assim como no campo dos negócios, no direito do trabalho as ações valem muito mais do que qualquer discurso jogado ao vento.

Por Luiz Eduardo Duarte